22 de novembro de 2011

APENAS UM AMIGO...




-  Tais Luso 

Mais uma madrugada e mais outro amanhecer, sempre o mesmo ritual: a noite despedia-se enquanto surgia a tímida luminosidade do amanhecer.

Mariana permanecia no sótão da casa, entre telas e pincéis. Ali em seu atelier, ela dava vazão às suas emoções, colocando em cada pincelada um pouco de seu espírito, por vezes melancólico e solitário. Os suaves e disciplinados acordes uniam-se em melodias que lhe tocavam o coração: as Ave-Marias de Gounod, de Shubert, de Donati...

Não demorou muito para que ela largasse as telas e desse descanso aos pincéis. Já cansada, debruçou sua cabeça sobre a mesa e passou a refletir sobre sua vida, seus encantos, desencantos, seus afetos, seus amigos, sua família.

Simpatizante da filosofia budista questionava-se, também, sobre a reencarnação e outros tantos caminhos. Mas até aquele momento não chegara a um consenso. Ao mesmo tempo em que estava sintonizada com a estética, estava em dissonância com  sua espiritualidade. E ali viu-se só.

A música inundava o atelier amenizando sua solidão. As tintas e os pincéis, antes deixados de lado, agora testemunhavam os abafados soluços de Mariana. O tempo foi cumprindo o seu percurso até que Mariana levantou a cabeça como se estivesse emergindo de profundezas. E fixou, ao acaso, seu olhar num quadro esquecido, dependurado e coberto por um pano,  quase diante de sua mesa, ao lado de objetos insignificantes.

Com curiosidade, levantou-se e removeu o pano que encobria o quadro que havia pintado há muitos anos. Um pouco surpresa, ficou a olhar aquele rosto de expressão suave, olhos cheios de ternura e os cabelos castanhos caindo sobre o belo rosto, numa suave harmonia.

Voltou à mesa e dali ficou a observar aquela expressão tão singular: um olhar que não recriminava e lábios que não acusavam. Talvez ela tivesse descoberto, em algum recanto de sua alma, sentimentos de generosidade e complacência. E pintara um retrato comprometido com esses sentimentos e com suas carências.

Já menos amargurada, levantou-se e substituiu a música: colocou “Chanson d’enfance” e enterneceu-se como se buscasse um afago; queria sentir apenas a alegria do momento, e ter uma paz que não oscilasse. E assim ficou por bom tempo, recostada no sofá, deixando-se conduzir pelos suaves acordes.

Mais tarde aproximou-se do quadro e fixou seus olhos na pintura:

- E agora Amigo? Estamos aqui sozinhos, frente a frente... Mas nada ouso Lhe pedir; retenho em minha memória a Sua Jornada... Mas procuro apenas alguém que me escute, que retorne comigo à infância, e que compartilhe de meus projetos; ainda que pequenos projetos; e que na solidão de minhas madrugadas esteja presente...

Sinuoso, o sol invadiu o atelier deixando uma sensação de conforto. Mariana caminhou em direção ao quadro, beijou o meigo rosto e encostou a porta...

- Até amanhã, meu amigo.






___________________________________
( Conto publicado na Revista de Artes Dartis nº 24)



21 comentários:

  1. Anônimo21:32

    E que amigo hein??? E bota mais amigo nisso aí...abraço.

    ResponderExcluir
  2. Anônimo18:38

    Olá Taís!! Vim aqui para dizer que adorei o seu blogger!! É ótimo, adorei sua linguagem, adorei os poemas, adorei quase tudo!! Quase, porque a única coisa que eu não concordei muito foi com os Pit-Bulls, tenho uma que é a coisa mais querida deste mundo(aliás, meu marido comenta que eu tranformei um pit-bull num poodle!!), mas não estou aqui pra abrir uma discução, e respeito a opinião alheia!! Adorei mesmo o teu blogger, você está de parabéns!! Aline Carvalho(Campo Grande-Mato Grosso do Sul).

    ResponderExcluir
  3. Taís,
    Confirmando o que disse por e-mail, adoro seus textos. Indico seu blog, falo dele, comento em minhas aulas os seus textos ecléticos e recheados de informação e atualidades! Você pensa como "gente grande" com clareza de idéias e bom senso! Enfim, virei sua fã! Que Deus a ilumine cada vez mais, minha amiga!

    ResponderExcluir
  4. Às vezes, só precisamos expressar o que sentimos. Nada mais!
    Beijos, amiga!

    ResponderExcluir
  5. OI Thais,

    Sempre gosto muito do que você escreve e com este texto não foi diferente. Porém, por ser diferente dos demais, gostei mais ainda, pois pude ver a sensibilidade e emoção "Thaís" transbordada em palavras.

    Abraços cara amiga

    ResponderExcluir
  6. Olá Taís,
    eu ainda não tinha lido um texto seu com esse tom romântico. Muito bom, como sempre, mas tenho a sensação de que você vai continuar a história. Aquele até amanhã, me parece um até logo...
    Um beijo de todos do atelier

    ResponderExcluir
  7. Tais,
    Eu amo tudo que você escreve, você já sabe disso. Mas este texto em especial foi perfeito, preencheu meu coração! Talvez por eu algum dia ter carregado os dilemas de Mariana e, de maneira similar ao que aqui foi descrito, ter encontrado o meu amigo, que me escuta nas madrugadas e a qualquer hora do dia, que me consola e me fortalece diante de qualquer dificuldade... Talvez por essa identificação, tua crônica tenha sido tão significativa para mim!
    Amei completamente!

    Um beijo.

    ResponderExcluir
  8. Belíssimo conto. Nada de "Retrato de Dorian Gray" de Wilde, mas profundo e bem concatenado. Parabéns, JAIR.

    ResponderExcluir
  9. Excelente Thais, um conto que na verdade é muito comum, quanta solidão, sabe algumas vezes converso com o quadro que retrata meu pai, nossa ali eu viajo, às vezes fico calada só olhando e de forma mágica me sinto tão calma. Quero te agradecer o carinho em minha página, Graças a Deus agora voltaremos ao hospital só para fazer as quimios, sei que vai dar certo, beijos Luconi

    ResponderExcluir
  10. Oi Taís, venho te seguindo e me encantando com as suas crônicas.
    Embora não tenha nenhuma formação,adoro escrever e pintar. Estas são as minha grandes aliadas de todas as horas tristes ou alegres.
    Naquele Momento acredito que Mariane mesmo que estivesse diante de outro quadro que fosse um pássaro , uma borboleta, ou até uma paisagem, se sentiria acompanhada de um amigo.Era na minha opinião, a sensação extrema de ligação entre a obra e o seu criador,algo que preenche qualquer vazio,qualquer solidão,como se um completasse o outro. Inexplicável talvez ´mas profundo. A mim foi passada esta sensação.
    Belíssima crônica!
    Obrigada pela visita ao meu cantinho.bjs.

    ResponderExcluir
  11. Felizes daqueles que podem contar com a presença de um amigo como esse.
    Taís, Parabéns pela belíssima crônica, leve e envolvente, uma delícia de ler do início ao fim.

    Beijos

    ResponderExcluir
  12. Olá,Taís!!

    Envolvida na leitura, viajei entre telas e pincéis, e com um olhar de reflexão sobre a vida a verdade encontrei! Amei a crônica!!!!
    Emocionante!
    Beijos pra ti!!
    Tudo de bom!

    ResponderExcluir
  13. Já me aconteceu....Não com rostos que não sei pintar......mas com
    quadros encostados há anos...
    Beijo

    ResponderExcluir
  14. Tais, que belo conto!Apenas um amigo, mais... que amigo especial!Com ele nunca estaremos sós.
    O que precisamos, na maioria das vezes é um ombro amigo, uma palavra de apoio, ou apenas alguém que nos escute com carinho.
    Saio daqui encantada , vestindo o meu sorriso mais bonito para transformar a inquietude em esperança.Bjs no coração Eloah

    ResponderExcluir
  15. Como todos declararam, tb adoro te ler, e este conto não me pareceu que teve um ponto final...

    O tom romântico que tb percebi, sinto, é uma parte de tua alma feminina, bela, suave, que se soma às outras que, integradas, te fazem esse Ser admirável - vc encanta, de verdade.

    Te deixo um abraço gostoso e o desejo de um ótimo fds!

    ResponderExcluir
  16. Boa noite, querida amiga Taís.

    Lindo!!
    Ela trocou a melancolia pelo sonho que a tela trouxe à tona.

    Tenha uma bela semana abençoada.

    Beijos.

    ResponderExcluir
  17. Ai Tais, que lindo!!!
    Amei!!!

    Com um Amigo desse, jamais nos sentiremos sós!

    Ja estava saudosa daqui...às vezes a gente se perde pela blogosfera...
    :)

    Super beijo, e fique com Deus.

    Cid@

    ResponderExcluir
  18. Oi, Tais. Eis que essa Companhia será o conforto para a solidão e a angústia existencial dos domingos, e dos dias em que ela precisar de amigo da alma humana: Ele. Adorei, Tais. Um abraço e otima semana.

    ResponderExcluir
  19. Tais,que divina inspiração nesse conto!Linda msg e resposta que Mariana teve!Bjs e boa semana!

    ResponderExcluir
  20. Tais, manda bem no conto também, hein? Gostei muito. Bem humano e singelo, parabéns!

    Uma sugestão: pense em tirar as maiúsculas que fazem o leitor sacar de bate-prontoquem é O Cara. Se vc assim o fizer, vai deixar só e tão-somente para o atento leitor e para o bom entendedor. Fica para reflexão.

    1 bjo
    Cesar

    ResponderExcluir
  21. Esse é um conto, Tais! Percebi a diferença! Tens uma facilidade em dispor as palavras. Ótimo! Obrigado, beijos!

    ResponderExcluir


Muito obrigada pelo seu comentário
Abraços a todos
Taís